É
dando que se recebe?
Estamos
em tempos de montagem de governos. Há disputas por cargos e funções
por parte de partidos e de políticos. Ocorrem sempre negociações,
carregadas de interesses e de muita vaidade. Neste contexto, se ouve
citar um tópico da inspiradora oração de São Francisco pela paz
“é dando que se recebe” para justificar a permuta de favores e
de apoios onde também rola muito dinheiro. É uma manipulação
torpe do espírito generoso e desinteressado de São Francisco. Mas
desprezemos estes desvios e vejamos seu sentido verdadeiro.
Há
duas economias: a dos bens materiais e a dos bens espirituais. Elas
seguem lógicas diferentes. Na economia dos bens materiais, quanto
mais você dá bens, roupas, casas, terras e dinheiro, menos você
tem. Se alguém dá sem prudência e esbanja perdulariamente acaba na
pobreza.
Na
economia dos bens espirituais, ao contrario, quanto mais dá, mais
recebe, quanto mais entrega, mais tem. Quer dizer, quanto mais dá
amor, dedicação e acolhida (bens espirituais) mais ganha como
pessoa e mais sobe no conceito dos outros. Os bens espirituais são
como o amor: ao se dividirem, se multiplicam. Ou como o fogo: ao se
espalharem, aumentam.
Compreendemos
este paradoxo se atentarmos para a estrutura de base do ser humano.
Ele é um ser de relações ilimitadas. Quanto mais se relaciona,
vale dizer, sai de si em direção do outro, do diferente, da
natureza e até de Deus, quer dizer, quanto mais dá acolhida e amor
mais se enriquece, mais se orna de valores, mais cresce e irradia
como pessoa.
Portanto,
é “dando que se recebe”. Muitas vezes se recebe muito mais do
que se dá. Não é esta a experiência atestada por tantos e tantas
que dão tempo, dedicação e bens na ajuda aos flagelados da
hecatombe socioambiental ocorrida nas cidades serranas do Rio de
Janeiro, no triste mês de fevereiro, quando centenas morreram e
milhares ficaram desabrigados? Este “dar” desinteressado produz
um efeito espiritual espantoso que é sentir-se mais humanizado e
enriquecido. Torna-se gente de bem, tão necessária hoje.
Quando
alguém de posses, dá de seus bens materiais dentro da lógica da
economia dos bens espirituais para apoiar aos que tudo perderam e
ajudá-los a refazer a vida e a casa, experimenta a satisfação
interior de estar junto de quem precisa e pode testemunhar o que São
Paulo dizia:”maior felicidade é dar que receber”(At 20,35). Esse
que não é pobre, se sente espiritualmente rico.
Vigora,
portanto, uma circulação entre o dar e o receber, uma verdadeira
reciprocidade. Ela representa, num sentido maior, a própria lógica
do universo como não se cansam de enfatizar biólogos e
astrofísicos. Tudo, galáxias, estrelas, planetas, seres inorgânicos
e orgânicos, até as partículas elementares, tudo se estrutura numa
rede intrincadíssima de inter-retro-relações de todos com todos.
Todos co-existem, inter-existem, se ajudam mutuamente, dão e recebem
reciprocamente o que precisam para existir e co-evoluir dentro de um
sutil equilíbrio dinâmico.
Nosso
drama é que não aprendemos nada da natureza. Tiramos tudo da Terra
e não lhe devolvemos nada nem tempo para descansar e se regenerar.
Só recebemos e nada damos. Esta falta de reciprocidade levou a Terra
ao desequilíbrio atual.
Portanto,
urge incorporar, de forma vigorosa, a economia dos bens espirituais à
economia dos bens materiais. Só assim restabeleceremos a
reciprocidade do dar e do receber. Haveria menos opulência nas mãos
de poucos e os muitos pobres sairiam da carência e poderiam
sentar-se à mesa comendo e bebendo do fruto de seu trabalho. Tem
mais sentido partilhar do que acumular, reforçar o bem viver de
todos do que buscar avaramente o bem particular. Que levamos da
Terra? Apenas bens do capital espiritual. O capital material fica
para trás.
O
importante mesmo é dar, dar e mais uma vez dar. Só assim se recebe.
E se comprova a verdade franciscana segundo a qual ӎ dando que
recebe” ininterruptamente amor, reconhecimento e perdão. Fora
disso, tudo é negócio e feira de vaidades.
Leonardo
Boff é autor de A oração de São Francisco, Vozes 2010.
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