CAPÍTULO 1
O Conflito Interior do Homem Moderno (pt3)
E Max compromete-se a seguir esse novo caminho com grande empenho.
"O realismo quase cínico de outros tempos na verdade ocultava a fonte de um 'idealismo' que agora
ele professa abertamente" — acrescenta Maeder.
Mas por que dizemos que se trata aqui de uma neurose, e não de uma simples crise normal
da adolescência?
Em primeiro lugar, o que caracteriza a neurose é a angústia. Esse jovem, que inicialmente se
mostrava tão seguro de si mesmo, deixou transparecer, na segunda sessão, por trás da fachada de
petulante, uma angústia profunda. Confessou que não estava contente consigo mesmo. A primeira
tarefa do médico foi ajudá-lo a tomar consciência dessa insatisfação secreta.
De igual modo, há no homem moderno uma oculta insatisfação consigo mesmo, uma
angústia da qual nem sempre tem consciência. Ele também se mostra ora inocente, ora acusador;
denuncia os culpados: sua esposa, o partido adversário, ou um Estado vizinho. Mas se
conversarmos com ele com maior intimidade, não tardaremos a ver que todas as suas críticas
escondem uma angústia interior. Lembro-me agora de uma outra expressão de Sartre, muito típica
de nossos tempos: "O homem é angústia" 3
Uma outra característica da neurose é a esterilidade. Os grandes sonhos daquele rapaz,
inclusive seu autêntico interesse pelo jazz, eram apenas fugas e compensações; não deram frutos e
não o livraram da sua angústia. Da mesma maneira podemos encontrar no mundo atual valores,
elites literárias, artísticas e espirituais que estão, porém, de algum modo, fora de foco, e que não
desempenham nenhum papel que contribua para o destino da sociedade.
O que há de realmente trágico nas neuroses é que o esforço que se faz para escapar dela é o
que acaba provocando-a. Podemos comprovar isso diariamente com nossos pacientes: é como se a
doença os levasse a cortar a corda que os mantém suspensos. Se depositam toda a sua confiança em
alguém, um impulso os leva a destruir, com a sua própria conduta, essa confiança. Se desejam abrir-
se com alguém e acabar com os mal-entendidos, agem de tal maneira que os desentendimentos, pelo
contrário, se multiplicam, o que lhes agrava a solidão. Se precisam ir bem numa prova, estudam
com tanto ardor e com tanta angústia que na hora da prova perdem completamente o sangue frio e
ficam totalmente aturdidos.
Percebo este paradoxo também no mundo moderno. Os esforços feitos para superar
situações negativas são a causa da própria perdição. Tudo o que é feito para evitar a guerra é o que a
precipita. Os esforços para que haja estabilidade na produção transtornam a economia e aumentam a
miséria. O trabalho que se faz para conhecer a fundo os segredos da natureza e captar suas forças
levam às armas nucleares, que ameaçam destruir tudo o que se construiu ao longo dos séculos. Os
esforços para livrar o homem da servidão social o fazem cair em lutas em que sofre mais do que na
situação anterior.
Tendo este ponto de vista, a crise do nazismo não teria sido um ato de neurose semelhante,
que o precipitou justamente para a sua própria ruína, com os mesmos meios que foram escolhidos
para dela tentar escapar? "O nacional-socialismo — escreve Röpke 4 — foi, em larga escala, a forma
alemã de uma doença mental internacional". E interessante comprovar, por outro lado, como a
aventura nazista evoca certos conflitos próprios da adolescência, tais como a fuga. "O fugitivo —
nos diz o Dr. Allendy 5 — arremete-se, sem pensar, à realização de um projeto que o fascina, não se
preocupando com o que depois possa acontecer; ele é refratário a qualquer argumentação em
contrário." Consideremos as palavras de Goebbels: "Se vencermos, todos quererão ser nossos
amigos." Tal como acontece com os neuróticos, o desejo de ser amado leva a fazer precisamente o
que é necessário para gerar o ódio.
Este comportamento oposto ao que se deseja é uma das características próprias da neurose; é
o que lhe confere uma aparência de maldição, de um aprisionamento fatal, de levar à
autodestruição, de ser uma força demoníaca. Foi justamente com o campo de concentração de
Buchenwald que o psicanalista Jung restaurou a velha noção bíblica de demônio. 6 André Malraux, 7
numa entrevista, também a evocou dessa mesma forma, assim como em relação à bomba atômica.
São conhecidas as palavras de Valéry: "Nós, os civilizados, sabemos agora que somos mortais". 8 E o
físico George acrescenta, um dia depois de Bikini (ilha em que foram feitas experiências com a
bomba atômica, em 1946): "A mortalidade das civilizações aumentou bruscamente". 1Esta impressão que se tem do mundo correndo para a sua total perdição evoca muito bem a
idéia de um impulso inconsciente. Gabriel Mareei 1 escreve acerca da obra de Sartre, dizendo que a
seguinte questão paira no ar: "Será que essa filosofia não se dirige para os abismos onde a nossa
desventurada espécie corre o risco de ser exterminada pelo poder da autodestruição?"
Definitivamente, o que caracteriza a neurose é que ela tem origem num conflito interior
inconsciente. Segundo Jung, "a neurose é uma doença porque não é consciente de seus problemas".
Isso ficou claro no caso relatado pelo Dr. Maeder. A base da cura residiu no esforço do médico em
ajudar o paciente a passar do plano de seus problemas aparentes para o verdadeiro problema em seu
interior.
Será que o homem moderno não sofre também de um conflito interior inconsciente,
ignorando totalmente qual é o seu verdadeiro problema? Será que, apesar da busca febril para
afastar o perigo das dificuldades políticas e econômicas — que vê como a única causa de seus
males, não obstante o aumento constante de poder, o desenvolvimento da ciência e o recrutamento
em massa de indivíduos para incrementar a produção —, a angústia do homem moderno não
diminui porque o seu verdadeiro problema está em outra parte?
Será que ele não expulsou da consciência o seu real problema, a verdadeira causa do seu
tormento, e por isso mesmo o projeta sobre tudo que toca?
Voltemos ao que estávamos dizendo sobre o Renascimento. De repente a humanidade
rejeitou aquilo pelo que vinha se orientando até então e decidiu não levar em conta os juízos de
valor, não confiar em nenhuma intuição metafísica, em nenhuma inspiração poética, em nenhuma
revelação transcendental. Resolveu construir sua civilização somente a partir das realidades
materiais e do conhecimento objetivo. Aparentemente ela se preocupa bem pouco, na atualidade,
com problemas de ordem filosófica, artística, moral ou religiosa. Deixou que os especialistas nessas
áreas batessem em retirada, como se esses problemas tivessem mais importância em relação ao seu
destino, que estar agora sendo regido pela economia, pela ciência, pela técnica e pela política.
Acrescente-se a isso o fato de não ter podido eliminar os problemas de ordem qualitativa e afetiva,
mas apenas os reprimiu em seu inconsciente. Jung mostrou a extrema importância do inconsciente
coletivo da humanidade, onde dorme tudo aquilo que tinha animado o seu espírito no passado: o
mundo do símbolo, da poesia, da verdade e da justiça. Assim como Freud revelou o inconsciente
animal, dos instintos, Jung estudou o inconsciente espiritual, que o Dr. Stocker 10 denomina
inconsciente superior, e que permanece intacto e ativo no homem moderno, sem que ele perceba.
"As religiões... foram escolas de vidas" — escreve Rougemont. 11 "Não resta a menor dúvida de que
as grandes religiões universais tiveram sob sua responsabilidade a educação da humanidade" —
afirma Maeder. 2
Chega-se à neurose quando se reprime algo que não foi eliminado. O homem moderno
acredita ter suprimido deste mundo os valores, a poesia, a consciência moral, mas não fez mais do
que uma repressão, e por isso sofre. E tal como o jovem paciente do Dr. Maeder que — por
compreender que a moral, que para ele o pai encarnava, e contra a qual ele lutava, na verdade era
por ele levada bem no fundo do seu coração — vê que lutar contra ela significa lutar contra si
mesmo.
E isto que é a neurose: uma luta interior.
"Cada época tem a sua doença típica" — diz o Dr. Gander. 12 A doença típica do nosso tempo
é a neurose, que para muitos médicos aflige mais da metade da sua clientela. E não é por acaso. A
nossa civilização materialista e amoral já não responde às profundas necessidades da alma.
As experiências de Pavlov com animais provaram que a neurose está relacionada com um estado de
indecisão da alma ou, como se diz em psicologia, com uma ambivalência. A a\ma moderna titubeia.
A evolução da sociedade a partir do Renascimento destruiu os tradicionais marcos de referência, e o
homem contemporâneo está perdido, cambaleando entre as doutrinas mais contraditórias. O mundo
lhe dá a sugestão de que o sentimento, a fé e a verdade filosófica não têm importância. Mas este
homem conserva no fundo do seu coração a correta intuição de que estas são as questões realmente
importantes. O mundo nada lhe diz sobre a sede de amor que ele sente, nem sobre a sua solidão
moral, nem sobre a sua angústia diante da morte, nem sobre o mistério do mal, nem sobre o mistério
de Deus. Estas questões são totalmente reprimidas pelo mundo, mas elas lhe causam uma obsessão.
Paul Tournier, Mitos e Neuroses