CAPÍTULO 1
O Conflito Interior do Homem Moderno
Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que o mundo moderno não goza de boa saúde. Seus
males são inumeráveis; ele está tendo convulsões. E evidente que precisa restabelecer-se.
O que o aflige?
Este é o problema que se apresenta todos os dias para um médico diante de seu paciente. Enumerar
os sintomas, discernir os mecanismos que desencadeiam tais sintomas e examinar de perto as lesões
dos órgãos mais afetados não significa, entretanto, fazer um diagnóstico.
Muitos homens lúcidos procuram hoje em dia formular um diagnostico desse modo, e a maioria o
faz com prudência, sem dissimular a dificuldade de que esses exames se revestem. Além disso, tais
diagnósticos muitas vezes são contraditórios, o que faz aumentar a nossa perplexidade. Os esforços
despendidos, no entanto, não são em vão: eles procuram, e nada encontra quem não procura. É neste
sentido que me uno a eles, não como alguém que creia já ter obtido o diagnóstico correto. Como
eles, eu também quero obtê-lo.
Quando nos deparamos com um "caso difícil", constituímos uma junta médica. Em conjunto
examinamos o paciente para fazer um diagnóstico preciso. Cada um dos médicos formula a sua
hipótese particular. Depois voltamos a examinar o paciente e verificamos se a hipótese corresponde
aos sintomas observados.
É com este espírito que escrevo este livro; vou submeter ao julgamento do leitor as hipóteses que
me ocorrerem quando estiver procurando compreender a doença do mundo moderno.
Atualmente cada uma de nossas disciplinas passa por uma crise: a ciência, a medicina, o direito. Há
também a crise política e econômica, a crise filosófica e a religiosa. Os especialistas poderiam
manifestar-se e descrever, muito melhor do que eu, cada uma dessas crises, e muitas outras mais.
Não sou historiador, nem teólogo, nem sociólogo. Inclusive em minha própria área, sou o menos
especializado dos médicos. Não sou mais do que um observador dos seres humanos, dos homens
que são infinitamente diferentes e ao mesmo tempo infinitamente iguais entre si, que dia após dia
abrem o seu coração para mim. Para eles escrevo, porque por trás de todas essas crises particulares
está a crise do homem moderno. Temos que especificá-la, e isso será uma tarefa difícil de se fazer.
Procurei encontrar o início do fio da meada, e creio tê-lo encontrado em Pascal, quando escreve: "A
sucessão de todos os homens, ao longo dos séculos, deve ser encarada como se fosse um único
homem, que sempre subsiste e que aprende continuamente." Consideraremos assim a história da
humanidade como sendo a história da vida de um homem.
Quando um paciente nos procura, a primeira coisa que fazemos é interrogá-lo sobre a sua infância e
adolescência. Procuramos compreender como ele se desenvolveu.
A infância da humanidade é a Antigüidade. O nosso paciente foi uma criança-prodígio. A
Antigüidade tem todas as características de uma criança-prodígio, que parece descobrir,
espontaneamente e sem qualquer esforço, os tesouros mais puros, mais verdadeiros e maiores. Isto
ocorre especialmente no campo da arte, da poesia, dos sonhos, como se todas as obras-primas
tenham brotado da sua cândida alma.
Entre os doentes de quem tratei nos últimos anos, conheci muitos que haviam sido crianças-
prodígios mas que, quando adultos, pareciam estar passando por uma crise bem profunda, na
medida que suas dificuldades atuais divergiam dos êxitos da infância. Lembro-me de um deles, em
particular, que na sua juventude havia tido muitas vitórias que foram fáceis, em comparação com a
mediocridade de tudo o que conseguia empreender então em sua vida adulta. Tal era o seu
desespero que se refugiava na mais completa inação, e tinha uma obsessão pela idéia de suicídio.
A infância, a Antigüidade, é a idade da poesia.
Depois a humanidade passou pela Idade Média, que podemos comparar com a idade escolar. A
criança de 8 a 15 anos aprende criteriosamente - tudo o que lhe ensinam. Acredita em tudo o que lhe
dizem que deve crer. Aceita sem discussão a autoridade dos pais e dos professores. É a idade da
religião aprendida. Do mesmo modo, na Idade Média os homens cresceram no sistema de
pensamento que o seu mestre, a Igreja, lhes impôs. Tudo aceitaram sem a menor crítica, sem sequer
se dar conta — tal como uma criança — de que o mestre tinha seus defeitos. E a idade em que se
crê que aqueles que instruem sabem tudo e são perfeitos. A criança considera-os como sendo
deuses. Aceita a fé e a moral que lhe ensinam e, ainda quando desobedece, não questiona a
autoridade que eles têm.
Depois vem o período da adolescência. Grande quantidade de conhecimentos novos, a embriaguez
do saber e a aspiração à experiência pessoal apresentam ao adolescente uma infinidade de
problemas que seus pais parecem ter-lhe ocultado. Ele se levanta então contra os pais; rebela-se.
Paul Tournier, Mitos e Neuroses
Paul Tournier, Mitos e Neuroses
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