CAPÍTULO 1
O Conflito Interior do Homem Moderno (pt2)
Reivindica o direito de pensar por si mesmo e não segundo um sistema de pensamento tradicional;
reclama o direito de conduzir-se a partir do seu próprio entendimento e não sob alguma autoridade.
Também julga os pais e vê que eles não aplicam em sua vida a moral que lhe ensinam. Discute com
eles acerca de todas as coisas e vence a discussão quando lhe confessam não terem respostas para as
insaciáveis perguntas que lhes faz.
Não podemos comparar essa crise da adolescência com a que foi causada pelo Renascimento?
O que caracteriza o adolescente é que essa afirmação de si mesmo, entretanto, é negativa. Ele
acredita estar livre e que pode provar a sua liberdade infringindo a tudo aquilo a que documente se
subordinara ate então. Contudo a sua liberdade tem mais palavras e discussões do que atividades
criativas. Dizer não a todas as coisas que antes tinha aceitado, não é isso que significa ser livre.
Do mesmo modo, depois do Renascimento a humanidade assumiu a posição oposta à
cosmovisão que a Antigüidade e a Idade Média lhe haviam ensinado. Substituiu a visão espiritual,
religiosa e poética do mundo por uma visão científica, realista, econômica. Tal como o adolescente,
a humanidade lançou-se, apaixonada e tumultuosamente, ao estudo de doutrinas extremistas e
contraditórias. Foi uma violenta reação contra a pretensão que tivera, no fim da Idade Média, de
colocar toda a cultura e a vida num sistema rígido e lógico, proveniente da fé.
Assim como o jovem rebelde acusa seus pais, o mundo moderno acusa a Igreja de ter sido o grande
obstáculo que o impediu de chegar a ter uma identidade própria, de pensar livremente. São palavras
de Nietzsche: "A idéia de Deus foi, até o presente momento, o maior obstáculo contra a existência."
Uma outra característica do nosso jovem adolescente é a injúria. Ele denigre os valores em que foi
educado. Zomba dos pais. Vê neles hipocrisia no seu conformismo moral e social. Neste ponto nos
lembramos de Sartre, esse homem tão característico da época moderna, que vê uma farsa em tudo.
"Consideremos este garçom — escreve ele — ... que brinca de ser garçom." E o que ele denigre são
fundamentalmente os valores tradicionais. Para ele, "ser pai de família é ser, sempre, e de modo
inevitável, alguém que brinca de ser pai de família..." — como escreve também Gabriel Mareei,'
enfatizando ainda "o ressentimento que anima Sartre contra tudo a que se possa chamar de 'ordem
social' ou, simplesmente, de 'ordem'."
A visão do mundo que Sartre tem é, assim, exatamente igual à do nosso jovem rebelde, que
denuncia o que há de encenação nas personagens admiradas em sua infância, das quais tem agora
um amargo ressentimento.
Assim, podemos comparar os séculos em que o homem viveu, a partir do Renascimento, com os
anos críticos da adolescência.
Essa crise é necessária e normal. Antes de chegar à maturidade, o jovem tem de passar por esse
tempo de ebulição em que questiona tudo. Chegará um dia em que recobrará os tesouros da infância
e voltará às crenças dentro das quais foi educado e aos princípios que lhe foram transmitidos,
porque eram verdadeiros. A vida fará com que os redescubra. Mas então lhes dará um tom pessoal,
assumindo-os como se tossem convicções próprias, fundadas em suas experiências mais íntimas. E
o que se chama, na psicologia, de integração.
Entretanto, a integração às vezes tarda a aparecer, e a crise da adolescência adquire
proporções de uma doença. E o que os psiquiatras chamam de "neurose de oposição".
Creio que foi isso o que aconteceu no desenvolvimento da história humana. E o diagnóstico que
proponho acerca do nosso mundo moderno. Assim, antes de prosseguirmos com o nosso exame,
vou esclarecer melhor o que é neurose de oposição.
O doutor A. Maeder, de Zurique, descreve um caso, com a exatidão e os detalhes que lhe são
peculiares, em seu bom livro Vers Ia Guérison de l’Âme (Para a Cura da Alma). 2 Vou resumi-lo
brevemente, mas recomendo ao leitor que leia a narração detalhada do autor.
Um certo professor envia ao doutor Maeder um aluno de 17 anos, a cujos graves fracassos escolares
somava-se uma atitude de rebeldia. Esse adolescente, a quem Maeder chama de Max, só pensava
em jazz; chegou a roubar dinheiro de seu pai para cobrir os gastos com uma orquestra com que se
envolvera, em vez de trabalhar. Max mostra-se reservado diante do médico, respondendo
laconicamente a suas perguntas. No entanto, deixa entrever que há um grave conflito entre ele e o
pai, o que faz com que constantemente o enfrente. Isso explica a sua frieza, já que perante qualquer
autoridade — e o médico é uma autoridade, assim como são os professores — o que ele faz é
demonstrar uma atitude de rebeldia, tal como a que vinha tendo para com o seu pai.
Diante da boa disposição do médico, porém, o jovem se desarma um pouco e explica as críticas que
faz de seu pai: este o tinha decepcionado muito; não tomou a defesa de sua mãe quando seus avós
paternos a acusaram injustamente. Essa fraqueza havia destruído a autoridade do pai sobre o filho.
No dia seguinte o médico vê que Max está um pouco mais aberto. Não está mais arrogante.
Confessa com sinceridade que se sente infeliz, que seus fracassos pesam-lhe muito e que se acha
impotente para mudar de atitude; e lamenta as decepções que causou ao pai. Mas quando o médico
sugere que diga isso a ele, Max rebela-se:
— Você não vai exigir que eu faça o contrário do que tenho feito até agora, não é?
E fica pasmado quando o doutor Maeder replica:
— Você me disse ontem que era um revolucionário. Então, fazer o contrário do que você fazia
antes, isso não é agir como um revolucionário?
— Pode ser... — foi sua breve resposta.
Quando questionado sobre sua fé, o jovem responde que não acredita mais em Deus. Diz ter
adotado a esse respeito uma atitude de independência.
O médico chama depois o pai do rapaz, para preparar um encontro entre os dois. O pai
mostra-se também bastante reservado. Forçando a situação, Maeder pergunta-lhe se ele não
reconhece ter também alguma responsabilidade diante do problema familiar. Após o choque inicial,
o pai acalma-se. Seus olhos ficam úmidos; o gelo se quebra. Reconhece os seus erros e se diz
disposto a dar uma explicação completa e sincera ao filho.
A conversa que Max tem com seu pai leva umas quatro ou cinco horas. O pai segue os
conselhos do médico e trata o filho com benevolência. Assegura-lhe que quer ajudá-lo e que o seu
desejo é deixar que escolha livremente entre os estudos e a música. Max fica consternado e volta a
procurar o médico: agora que se sente livre percebe que suas dificuldades têm raízes em si mesmo;
ele tem, na verdade, "medo de si mesmo". Espontaneamente confessa suas mentiras, o sentimento
de culpa por masturbar-se, os pensamentos "sujos"... Acrescenta que duvida de si mesmo, já que,
apesar de todos os seus esforços, nunca chegou a nada.
O médico explica-lhe então o importante papel que o conflito com seu pai desempenhou em
seus fracassos: atrelada à atitude de rebelião contra o pai estava, de um lado, a rebelião escolar, o
conflito com os professores, do qual, em última instância, ele mesmo fora a vítima. E, por outro
lado, havia também a rebelião contra Deus, a autoridade suprema, mas que é, ao mesmo tempo, a
fonte que pode lhe dar toda a vitória sobre si mesmo. "A situação central do homem está
representada na parábola do retorno do filho pródigo".
Assim a entrevista passa, sem se perceber, do campo da psicoterapia para o campo da cura
da alma. E o médico compartilha suas próprias experiências religiosas, mostrando ao rapaz como,
na presença de Deus, submetendo-se à vontade dele, é possível aceitar-se tal como se é, aceitar o
combate da vida com maturidade, aceitar a sexualidade e dominá-la.
Paul Tournier, Mitos e Neuroses
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