Bartleby
Kant define o esquema da possibilidade como
«a determinação da representação de uma coisa
num tempo qualquer». À potência e à possibilidade,
enquanto distintas da realidade, parece ser inerente
a forma do qualquer, um irredutÍvel carácter
de quodlibet. Mas de que potência se trata aqui?
E que significa, neste contexto, o termo «qualquer»?
Dos dois modos sob os quais, segundo Aristóteles,
se articula cada potência, decisivo é aqui aquele
a que o filósofo chama «potência de não ser»
(dynamis me einai) ou então impotência (adynamia).
Uma vez que, se é verdade que o ser qualquer tem
sempre um carácter potencial, é igualmente certo
que ele não é apenas potência deste ou daquele
acto específico, nem é, por esse facto, simplesmente
incapaz, privado de potência, nem tão-pouco capaz
de qualquer coisa indiferentemente, todo-poderoso:
propriamente qualquer é o ser que pode
não ser, que pode a sua própria impotência.
Tudo reside, aqui, no modo como se dá a passagem
da potência ao acto. A simetria entre poder
ser e poder não ser é, de facto, apenas aparente.
Na potência de ser, a potência tem por objecto um
certo acto, no sentido em que, para ela, energein,
ser-em-acto, só pode significar passar a essa actividade
determinada (por isso, Schelling define
como cega esta potência, que não pode não passar
ao acto); para a potência de não ser, pelo contrário,
o acto não pode jamais consistir num simples
trânsito de potentia ad actum: ela é, pois, uma potência
que tem por objecto a própria potência, uma
potentia potentiae.
Só uma potência que tanto pode a potência
como a impotência é, então, a potência suprema.
Se toda a potência é simultaneamente potência de
ser e potência de não ser, a passagem ao acto só
pode acontecer transportando (Aristóteles diz «salvando
») no acto a própria potência de não ser. Isto
significa necessariamente que, se é próprio de todo
o pianista tocar e não tocar, Glenn Gould é, no
entanto, o único que pode não não-tocar, e, aplicando
a sua potência não apenas ao acto, mas à sua
própria impotência, toca, por assim dizer, com a
sua potência de não tocar. Face à habilidade, que
simplesmente nega e abandona a própria potência
de não tocar, a mestria conserva e exerce no acto
não a sua potência de tocar (é esta a posição da
ironia, que afirma a superioridade da potência positiva
sobre o acto), mas a de não tocar.
Em De anima, Aristóteles enunciou sem meios-
termos esta teoria, precisamente a propósito do
tema supremo da metafísica. Se o pensamento fosse,
de facto, apenas potência de pensar este ou
aquele inteligível, então - argumenta Aristóteles
- ele desapareceria desde logo no acto e fica- ,
ria necessariamente inferior ao próprio objecto;
mas o pensamento é, na sua essência, potência
pura, isto é, também potência de não pensar e,
como tal, como intelecto possível ou material, é
comparado pelo filósofo a uma pequena tábua de
escrever na qual nada está escrito
(é a célebre imagem que os tradutores latinos nos restituem com a
expressão tabula rasa, ainda que, como observavam
os antigos comentadores, se devesse falar antes de
rasum tabulae, isto é, da camada de cera que reveste
a tábua e que o estilete risca).
É graças a esta potência de não pensar que o
pensamento pode virar-se para si próprio (para a
sua própria potência) e ser, no seu auge, pensamento
do pensamento. Neste caso, o que ele pensa,
no entanto, não é um objecto, um ser-em-acto,
mas essa camada de cera, o rasum tabulae, que não
é mais do que a sua própria passividade, a sua pura
potência (de não pensar): na potência que se pensa
a si própria, acção e paixão identificam-se e a
tábua de escrever escreve-se por si ou, antes, escreve
a sua própria passividade.
O acto perfeito de escrita não provém de uma
potência de escrever, mas de uma impotência que
se vira para si própria e, deste modo, realiza-se a si
como um acto puro (a que Aristóteles chama intelecto
agente). Por isso, na tradição árabe, o intelecto
agente tem a forma de um anjo, cujo nome é
Qalam, Penna, e cujo lugar é uma potência imperscrutável.
Bartleby, isto é, um escrivão que não deixa
simplesmente de escrever, mas «prefere não», é
a figura extrema deste anjo, que não escreve outra
coisa do que a sua potência de não escrever.
(AGAMBEN, 2006, A Comunidade que Vem,p.
33-35)
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