SAPUTI:
O GOSTO SAGRADO DE MINHA ALMA
Amo
sua maneira discreta de envolocrar seu conteúdo, com aquela
pelezinha morena, sem oferta de si mesma a ninguém, recatada, e com
carinha de coração. Assim é sua frutosa face. Cara de fruta. Fruta
com cara. Fruta cara. Cara fruta. Fruta em extinção... O cheiro que
exala quando a bichinha está madura me faz sentir como um garanhão
de sabores à busca da fêmea que se expressa aos sentidos como
fragrância irresistível. Você não pode comê-la de boca. A pele
morena que abraça tem uns pelinhos quase invisíveis. Ela precisa
ser aberta, toda, de ponta a ponta, com a faca. Madura ela não
oferece nenhum resistência. E dentro? Meu Deus! dentro ela é
fálica. Seu desenho é feminino, lindo, absolutamente convidativo.
Bem no meiozinho dela há uma semente preta, lisa, com o desenho de
uma canoa pequenina. É como se duas canoas iguais tivessem sido
postas uma sobre a outra. Ela é cheia de vida. Só é jogar no chão
dela que ela se abre outra vez, e oferece ao mundo o seu sabor na
forma de uma árvore de docúras. O gosto é terrenamente celestial e
celestialmente terreno. Somente quem come com o coração pode me
entender. É doce, mas não enjoa nunca. É uma doçura grave,
meladamente discreta, impossível de não ser degustada com todo
carinho pela língua que sabe discerni-la como gosto. É gosto de
terra doce. O mel da terra. É terra melada. Às vezes acho que só
eu seu comê-la dando-lhe o valor que ela tem. Quando falo dela
parece que só eu a vejo como ela é. Todo mundo fica espantado.
Saputi me enche de saudades maiores que ela própria. Remete-me para
a essência de minha existência. Faz-me sentir menino e homem. Não quero me fazer entender. Quero apenas falar. Se me perguntassem qual
é o gosto terreno da Árvore da Vida, eu de pronto diria: tem gosto
de saputi. Desde que cheguei em Manaus que não faço outra coisa.
Como saputi no café, no almoço e no jantar. Só não como saputi
todos os dias de minha vida porque estou quase sempre longe dela. Mas
não há um único dia em que pensando no que seja gostoso nesta
vida, eu não diga a mim mesmo: gostoso mesmo é saputi! Alguém
talvez pense que sou tarado por saputi. E sou mesmo. Acho melhor amar
saputi que um pé de mandacaru, cheio de espinhos; ou o gosto
sanitário da pêra, ou ainda a textura isoporzada da maçã. Não me
leve a mal, é que acabei de comer a última que tinha em casa, e
retornarei ao Rio em dois dias. Já estou com saudade dela. Já
cheguei aqui com saudade dela também. Se alguém quiser me agradar,
por favor, me dê um saputi. Diz-se “um sapoti”, mas ninguém que
tenha “provado” consegue pensar “nele”, pois o gosto é
“dela”. Por isso aqui na minha terra diz-se "uma sapotilha",
não um sapoti. Amozonense sabe que sapoti tem gênero, é não é
masculino. Todos esses anos sempre fui coerente com meu amor pela
frutinha doce. Em meu livro Nephilim, Abellardo, o peregrino de
tempos e eras, guardava uma fruta doce que carrega a recordação de
seu amor. Quando imaginei a fruta, comi em minha alma uma saputilha.
Chamei-a de “fruta doce” apenas porque não quis profanar seu
nome sagrado. Me perdoe a indiscrição, mas é que todo mundo diz
gostar muito de alguma coisa. Tem gente que gosta até de novela da
Globo. Eu amo saputi. Caio Escrito em outobro de 2003, em Manaus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário